O
evangelho de hoje tem lugar no contexto da semana da paixão de Jesus, ao dia
seguinte da expulsão dos vendedores do templo e depois das tensas polêmicas com
os escribas, fariseus e principais da sociedade. Jesus deixou muito claro, no
referente à convivência social e ao culto, o profundo contraste existente entre
os responsáveis do povo e o reino de Deus que ele deve proclamar.
Jesus
e seus discípulos estão nos átrios do templo. Ali contemplam o passo dos
personagens da vida social e religiosa, com seus trajes e distintivos, e as
reverências e adulações que a gente lhes outorga. E vêem o aspecto de poderio e
de superioridade social que estes irradiam na rua, nas sinagogas e nas reuniões
sociais. Jesus critica fortemente sua ambição de procurar os assentos mais
distinguidos nas sinagogas e nos banquetes. Em contraste, Jesus e seus
discípulos vêem uma pobre viúva que deposita no cofre das ofertas do templo uma
esmola muito pequena. Jesus a observa e diz a seus discípulos: “Asseguro-lhes
que essa pobre viúva deu no cofre das ofertas mais que ninguém. Porque os outros
deram do que lhes sobra, mas esta, que passa necessidade, deu tudo o que tinha
para viver”. Jesus se expressa em uma íntima sintonia moral com a viúva. Nela
vê um reflexo de sua mensagem e dos valores do novo reino de Deus. Sabe que
onde há gratuidade radical ali está Deus, única fonte que a faz possível. Jesus
mesmo é expressão humana desta absoluta gratuidade divina tanto por sua
dedicação aos outros como pelo iminente acontecimento da cruz, máxima entrega
gozosa e total.
A
pobre viúva é como uma parábola prática e singela de como quer Deus que todos
sejamos e vivamos: generosidade sem reservas. Jesus nos convida não só a dar,
mas também a dar-nos a nós mesmos sempre e em tudo, e muito concretamente nas
circunstâncias e dificuldades mais difíceis da existência. É certamente uma
mensagem de exigência, difícil, mas muito belo.
A MENSAGEM DAS LEITURAS: As protagonistas das
leituras são duas pobres viúvas situadas, como era habitual em Israel, no
extremo da pobreza e necessidade. Nada poderiam dar, e menos ensinar. Mas em
seu exemplo, Jesus nos vai indicar o que Deus quer que nós sejamos. No primeiro
livro dos Reis vemos Elias fugindo do rei Ajab por causa de sua luta contra os
seguidores dos deuses cananeus aos que a gente implorava a chuva e a
fertilidade, a comida e a saúde, a vida e a fecundidade. Em sua fuga, o profeta
encontra a uma viúva que tão somente tem um pouco de farinha e de azeite. Vai
fazer um pãozinho para ela e seu filho com o fim de comê-los antes de morrer de
fome. O profeta pede à mulher pão e água. Ela não se reserva nada e dá o que
tem, o que ela necessita para não morrer. E o Senhor premia com abundância seu
gesto, pois “a talha de farinha não se esvaziou, nem a azeiteira de azeite se
esgotou”.
No
evangelho Jesus olha para uma pobre viúva que, em contraste com os ricos que depositavam
quantidade do que lhes sobrava, ela depositou no cofre das ofertas do templo
uma quantidade pequena, mas que era o único tinha para viver. Jesus a põe em
forte contraste com os responsáveis religiosos do povo e com os ricos. E
proclama uma inaudita inversão de valores: desacredita e rechaça a aqueles a
quem o povo aplaude, enquanto que enaltece à viúva, à qual o povo olha para ela
como a uma desgraçada. Mas o verdadeiramente medular em toda a pregação de
Jesus é a canonização da gratuidade radical, não a daqueles ricos que dão de
sua abundância, mas daqueles pobres que dão de sua própria carência.
JESUS CANONIZA A
GRATUIDADE RADICAL:
A mensagem central de Jesus é um amor sem limites. O amor, se não for total, já
não é amor. Muito facilmente degenera em vaidade e interesse. Só é autêntico aquele
amor que nasce do coração. Deus é amor e todo aquele que se aproxima dele, ama
necessariamente. O amor é o que nos aproxima de Deus e nos identifica com ele.
Do amor puro ao amor interessado há só um passo. Jesus, no evangelho de hoje
nos diz duas coisas importantes. Primeira: que não devemos tomar a Deus para
servir-nos dele, com a desculpa de temos a Deus podemos ser prepotentes sobre
outros. Segunda: que a força de Deus é a humildade que assombra e que jamais nos
faz ser inferiores.
Ante
o Deus cristão, que é o Deus da cruz, ninguém pode vangloriar-se ou abusar de
qualquer classe de poder, nem cair na ostentação da vaidade. Ninguém pode
converter a fé, ou a celebração em espetáculo chamativo e fascinante em seu
proveito, em exaltação de dignidades, em solenidade que humilha, e, por cima de
tudo, ninguém pode deslocar nem suplantar a Cristo nem a sua entrega na cruz. A
cruz, como conteúdo e forma é irrenunciável. Não podemos diminuir a ninguém. Os
cristãos não temos outra “sabedoria” ou “força” que “a debilidade” ou “loucura”
da cruz, como diz São Paulo. Ninguém pode utilizar a consciência de puro para
excluir, abater, entristecer. Ninguém pode fazer trapaças ou negócios com Deus
para ganhar prestígio social e capacidade de influências lucrativas, ou para
comprar bem-estar e prerrogativas, ou para lucrar graças ou vantagens
temporárias e eternas à margem do amor generoso e desinteressado. Nenhum cristão,
e menos os responsáveis da Igreja, tem a vênia evangélica para induzir pessoal
ou comunitariamente opções sociais de desunião e de falsa exaltação, nem pode
desconsiderar a força moral da unidade e da concórdia social, nem pode guardar
silêncio diante das ásperas falsificações culturais e históricas de interesses de
partidos que crispam, dividem, desintegram e separam.
Ante
o Deus cristão só tem validez a generosidade que se dá, a solidariedade que se
apropria do mal dos outros, o amor desinteressado que brota do coração mais
limpo. A transcendência de Deus é sua condescendência, seu fazer-se um nada e
sua humildade. Não é evangélica a lei que justifica intrinsecamente ações más,
nem a razão que condena fazer o bem, nem o silêncio que ofende. Não nos faz
livres com a abundância, mas com a generosidade. Não é cristão pôr preço à paz
ou à reconciliação, ou encastelar-se na falsa dignidade pessoal, ou esmagar a
alguém mediante a própria defesa, nem denegrir para sair justificado ou
vencedor. Nenhuma vitória ou prepotência conquistou jamais o coração dos
homens, e menos Deus. Evangelicamente é uma desgraça esmagar ou ter submetido a
alguém.
O
cristão nunca pode justificar a sua falta de generosidade, da gratuidade
radical. Deve abandonar a cultura do interesse para viver aquela da
generosidade. Deve preferir a humildade à ostentação, a simplicidade ao poder,
a reconciliação ao ressentimento, a amizade à frieza, a companhia à solidão, a
universalidade aos grupos estreitos, a concórdia à desintegração, a
condescendência à intransigência, ao diálogo mais que o silêncio, a doçura mais
que a agressividade, as mãos cheias às mãos vazias, a alegria à tristeza, o
oferecimento generoso à chantagem do requerimento. Ser cristãos é amar ao outro
não como a nós mesmos, mas, mais que a nós mesmos, conforme nos disse Jesus:
“amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jn 15,12).
Padre
Rafael Vizcaino, LC
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