DEIXAR-NOS
JULGAR PELO EVANGELHO
33º
Domingo Comum (B)
O ano litúrgico está chegando a seu
término e São Marcos nos fala hoje no evangelho do fim do mundo. Esta visão
escatológica nos ajuda a refletir sobre o que na vida permanece ou perece.
Neste contexto de desenlace e de destruição, aparece como figura central da
cena o Senhor que retorna para reunir e salvar aos seus.
O ano litúrgico gira em torno da
páscoa de Cristo e é sua realização, ao vivo, na comunidade cristã, em cada um
de nós. Celebrando os mistérios da vida do Senhor, de Advento a Pentecostes, e
comungando com o evangelho e a Eucaristia, ele se vai formando em nós e vamos
nos identificando com Ele. Não são meras celebrações externas, nem tampouco memória
de um passado que não retorna. Ele se faz nosso contemporâneo e, como Espírito vivificante,
segue atuando no homem e a favor do homem. O que ontem ocorreu na história,
hoje acontece dentro de nós. O Espírito grava ao vivo em nós a vida e
sentimentos de Cristo, e vai transformando em seu corpo místico. O que o
evangelho de hoje anuncia não é tanto o fim do mundo, como sua transformação.
São Marcos escreve seu evangelho no
contexto de acontecimentos tão dramáticos como a guerra judaica, a destruição
do Templo de Jerusalém, a primeira perseguição dos cristãos em Roma. É um tempo
de crise. Também nós vivemos hoje uma grave situação de emergência. É tão grave
a crise que se perde o sentido do eterno, exalta-se o temporal como o único absoluto,
ridicularizam-se os valores tradicionais, derruba-se o sistema econômico,
aumenta terrivelmente o desemprego, proliferam os despejos de moradias, milhões
de famílias carecem do mínimo para subsistir. Muitos convertem em ganho pessoal
aquilo mesmo que está na origem do afundamento dos outros. Vivemos um sistema
econômico neoliberal desumano e cruel que não coloca à pessoa, aos que mais
sofrem, no centro.
A incerteza, o fracasso, a solidão, a
enfermidade, a insegurança econômica, política e psicológica, encerram a muitos
em uma depressão sem saída. Asfixiados pelos problemas, muitos já não vêem o
sentido de sua própria existência. Sentem-se jogados nela sem capacidade de pôr
rumo para direção alguma. Poderiam confiar em Deus, mas a religiosidade de
muitos está feita à carta e se fazem um deus a sua medida. Consciente ou
inconscientemente, muitos, até crentes e cristãos, falam o que deve se fazer. Mas
não permitem a atuar a Deus a sua maneira.
Em meio desta grande tribulação, Jesus
nos diz hoje no evangelho que ele está perto, à porta. Pede-nos estar
vigilantes. Os poderes deste mundo não têm a última palavra na história. Jesus
é radicalmente a salvação, a cura e a solução para o
homem. Nossa atitude verdadeira é nos deixar julgar e transformar por seu
evangelho.
A MENSAGEM DA PALAVRA
O discurso
escatológico de São Marcos é um dos textos mais complexos do Novo testamento.
Apesar de sua escuridão, sua intenção fundamental é a de tranqüilizar a uma
comunidade turvada e assustada pelos demolidores contratempos acontecidos na Judéia
e Roma durante os anos 70 depois de Cristo. Do versículo primeiro ao quatro
deste capítulo treze, parece que Jesus fala da ruína de Jerusalém; mas a partir
do versículo vinte e quatro se refere claramente ao final dos tempos. O texto
reflete uma tensão contida sobre a vinda do Filho do homem. Por um lado
assegura que “não passará esta geração antes que tudo isto se cumpra”, mas por
outro reconhece que “o dia e a hora ninguém o conhece”. Nos primeiros momentos
a comunidade acreditava na iminência do retorno de Cristo. Mas depois esta
espera fica postergada. Cristo virá, mas em um futuro incerto. Não obstante,
quando o texto fica redigido, a comunidade revela grande maturidade e assume a
situação com fé e esperança.
A primeira
leitura está tirada do livro do Daniel, que apesar de suas referências ao tempo
do exílio em Babilônia, provavelmente foi escrito durante o levantamento
Macabeu, 167-164 a.C., com o fim de reanimar aos judeus perseguidos pelo rei selêucida
Antíoco IV, fortalecer sua fé e sua fidelidade à lei e alimentar sua esperança.
A carta aos Hebreus recorda o fundamento da esperança: Cristo, quem com uma só
oferenda, aperfeiçoou para sempre aos que vão sendo consagrados. Com Cristo a
salvação é já firme e segura.
DEIXAR-NOS JULGAR PELA SUA PALAVRA
A imagem
apocalíptica do fim do mundo, e o fim do ano litúrgico, convidam-nos a nos
deixar julgar pela palavra de Deus. Com a encarnação de Cristo o fim dos tempos
se estabeleceu no centro da história, no suceder do tempo. Ele é a eternidade e
a plenitude. Acolhendo-o como palavra e pão, vamos revestindo-nos de
eternidade. Se nos deixamos transformar nele já não seremos julgados. Nossa
transformação divina e eterna é gerada no tempo. Esta renovação espiritual passa
por duas atitudes profundas: o reconhecimento de Deus como nosso Deus e o
reconhecimento do homem como nosso irmão.
Deveríamos deixar-nos
tomar pela presença de Deus em nossa vida, dentro de nós. Mas não o deixamos. Fizemos
uma imagem mental dele, mas não acabamos de nos deixar afetar pelo Deus vivo.
Quando lhe falamos, seguimos falando com nós mesmos, pois não fazemos o que ele
quer, mas o que nós preferimos. Buscamo-nos em Deus, mais não o buscamos a ele.
Não temos os olhos abertos ao que Deus faz em nosso entorno, nas pessoas que
nos rodeiam, mas só ao que nós pensamos que Deus “tem que” ser e fazer. Deus é
livre para fazer o que ele quer com todos e em tudo. Nós tentamos lhe
condicionar. Fazemos-lhe um Deus a nossa maneira. Pedimos-lhe coisas quando ele
está desejando que lhe peçamos outras. Obrigamos-lhe a pensar com nosso
pensamento e a julgar com nosso juízo. E isto é engano e obcecação. Somos
frívolos, extremamente orgulhosos, não temos desenvolvimento espiritual porque
ignoramos a compaixão e a misericórdia. E, sobre tudo, nos falta relacionar-nos
com Deus pelo amor.
Concebemos mal a
Deus e, em conseqüência, olhamos também mal aos outros. Olhamos-lhes desde nós,
não dos olhos de Cristo na cruz; desde nosso juízo e condenação, não do amor e
o perdão. Centrados em nós, em nossa opinião, não sabemos descobrir os
verdadeiros sinais de “sua” presença nos outros: em seu sofrimento e
necessidades: “estive triste, doente, faminto, preso… e não me socorreram”. Nós
temos já estabelecido o que é o bem e o mal. Damos-lhe tudo feito a Deus.
Pode-nos a legalidade, nossa subjetividade, e etiquetamos para sempre às
pessoas e as coisas, o que são e têm que ser. Temos o “open apagado” para a voz
de Deus. Diminuímos muito as comunicações e as carícias. Praticamos o mau trato
psicológico. Um menino, sem sustento, morre. A vida nos vem pelos outros. Deus
quis que puséssemos em comunhão o que somos. Um adulto sem estima e afeto fica
doente. Seu pensamento e seu afeto se deformam. Quando o amor falha, todo homem
entra em deterioro. Nos afeta mais o mal
que o bem. Sendo negativos, todos perdemos. Todos ganhamos amando. Amemos
sempre na verdade e sinceridade. Preparemos o nosso coração cheio de amor a
Cristo para proclamar-lo Rei o próximo domingo.
Pe Rafael Viscaíno LC
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