O conhecimento dos Anjos diferia dos homens pelo fato deles aprenderem a medida e as proporções daqueles efeitos referidos, de um modo mais simples e mais profundo. E fácil é de atingir a razão disto: os Anjos ocupavam o lugar mais eminente da criação, estavam mais próximos de Deus, possuíam todas as qualidades requeridas para mais nitidamente perceberem a Sua onipotência, a Sua beleza e a Sua grandeza infinitas. Divergiam ainda dos homens no seguinte: os Anjos, conforme a feição de sua natureza, viam e sentiam melhor; assim como, exemplificando, o mesmo objeto e o mesmo som podem ser percebidos mais ou menos perfeitamente, conforme melhor ou pior vista, melhor ou pior ouvido que possa ter cada um de nós.
Depois de esclarecido o conceito do conhecimento dos Anjos com referência à sua natureza, devemos acrescentar que Deus, num ato de liberalidade e num excesso de infinito amor, quis também fazê-los participantes do Seu próprio modo de existência, da Sua própria natureza divina, da Sua própria vida, elevando-os da ordem natural à ordem sobrenatural , do estado de simples criatura ao de filhos. E de que maneira? Em virtude de um princípio vital que, insuflado no espírito deles, os sublimou, os tornou capazes de uma atividade e de um poder superiores; quer dizer gratificou-os Deus com um dom - o dom da graça santificante.
Desta forma, elevando-os do estado de criaturas ao estado de filhos, Deus tornou-se Pai para os Anjos. Pai que, preocupado com o futuro de Seus filhos quis fazê-los participantes do Seu Ser; isto é permitiria que O vissem, tivessem Dele uma visão inefável e inebriante, já não na obscuridade da fé e de seus efeitos, mas direta e imediatamente mergulhados e como perdidos no oceano da Sua luz, na imensidade da Sua sabedoria, nos caudais da Sua alegria, no infinito da Sua beleza e perfeição. Que dom não lhes era feito!...
O grande segredo deste dom souberam-no os Anjos mediante a benévola vontade do próprio Deus. Mas ser-lhes-ia possível um dia conseguí-lo? Deus - de Quem os separava uma distância e um abismo impossível de transpor, apesar da sua posição sublime era-lhes inacessível, tal qual o sol para os mosquitos. Não os havia, no entanto, revestido Deus de uma nova virtude que lhes multiplicava o vigor e lhes dava asas mais velozes e robustas? Os Anjos dispunham dos inestimáveis recursos da graça; por conseguinte poderiam alterar-se. Porém era necessário que eles primeiro o merecessem. Com esse intuito os Anjos foram estabelecidos em posição tal que podiam livremente determinar-se, querer e agir, sem obrigação nem constrangimento de qualquer sorte. A liberdade, que é dos maiores e mais apreciáveis atributos divinos, era um dos dons com que foram enriquecidos. Pelo seu poder os Anjos poderiam ganhar o Paraíso, aspirando a ele sem coação, num estado de espírito absolutamente livre, feito de humildade e reconhecimento, de amor e de adoração para o seu Senhor e Benfeitor... Como iriam eles proceder? Que uso fariam da faculdade do livre arbítrio que lhes fora concedida?
É provável que, de início, tenha havido por parte da massa global dos Anjos uma efusão espontânea e consciente, quase que uma chama súbita de reconhecimento e de amor. Àquele que os tirou do nada, dotando-os com existência própria, com maravilhosa e eminente personalidade. A seguir,porém,houve entre certos Anjos um arrefecimento, uma falta de amor que os levaria por fim à ruína.
Acima de todos os Espíritos angélicos achava-se um mais esplêndido e poderoso, protótipo da semelhança Divina, cheio de sabedoria e perfeita beleza: era Lúcifer. Consciente de sua própria dignidade e nobreza natural, nelas se deleitou, admirando-as, e, desvanecido de si mesmo, tornou-se orgulhoso:"O teu coração ensoberbeceu-se com a tua beleza." Mas bem certo é que, onde quer que aponte complacência e estima própria, onde exista egoísmo e orgulho, extingue-se a generosidade diminui o amor a outrem. Foi assim que Lúcifer começou a não amar a Deus, opondo o amor próprio ao amor d'Aquele que o fizera nascer tão privilegiado e tão insigne para além de todos os seres criados. O orgulho foi crescendo a par do amor próprio e fê-lo esquecer a dependência de Deus. Persuadiu-se que conseguiria a bem-aventurança sobrenatural apoiado exclusivamente nos recursos da natureza e sem a graça Divina. De forma idêntica é que o homem, ensoberbecido pela ciência e pela inteligência - que a si mesmo não deve - fica sujeito a desvios. Mas o estímulo de Deus persegui-o; e é então que Deus se torna uma sombra, que esmaga o homem e que esse se esforça por repelir, para ceder às suas inclinações e justificar o seu mal procedimento.
Não deve ter sido diverso o comportamento de Lúcifer. Tornaram-se inevitáveis o desconhecimento de Deus e a revolta contra Ele; e, uma vez eclodida a revolta, um como clarão sinistro incendiou o Céu. Estrondou grito horrífico, respondendo-lhe em eco multidão de anjos cujo amor próprio, auto-suficiência orgulho igualmente haviam pervertido: "Hei de escalar os Céus...Serei semelhante ao Altíssimo!" vociferavam eles.
Como raio surge então um espírito nobilíssimo; despredendo-se dele força empolgante e irresistível. Alteando-se com toda sua nobreza realçada por um impulso generoso e um furor sagrado, irrompe entre a multidão presa nas garras do tumulto e da perdição. "Quem é como Deus?" brada esse espírito magnífico e poderoso, o Arcanjo São Miguel. E esse brado trespassa como luz fulminante a extensão imensa do Céus, reboa por entre miríades de Anjos.Uns arrepiam-se perante a tragédia iminente;cobram ânimo outros e colocam-se apostos. As duas hostes antagônicas infileiram-se frente a frente, cada um com seu chefe. Trava-se por instantes conflito intenso "de pensamentos e sentimentos." Instante fatal foi esse, que aos revoltosos gelou de medo e a todos arrastou com Lúcifer, "precipitando do Céu como se fora um raio". De nada lhe presta ser o primeiro e mais forte: Deus, conservando-lhe embora a natureza incorruptível, degrado-o instantaneamente, priva-o da graça e da força que da graça lhe advinha. Tal qual o servo inútil da parábola dos talentos, ficou privado do que possuía, para logo ser lançado nas trevas onde há choro e ranger de dentes.
Tal foi o trágico fim de Lúcifer e dos outros anjos rebeldes: exclusão do Paraíso, condenação sem termo e sem remédio. Castigo terrível de que não há exemplo na história humana e ao lado do qual a tragédia universal do dilúvio perde muito do seu horror.
De harmonia com a lei da translação da graça, o Arcanjo São Miguel assumiu o comando das legiões angélicas em substituição a Lúcifer; e tanto ele como os demais Anjos fiéis foram enriquecidos com as graças e prerrogativas, que Deus já não podia derramar sobre os anjos rebeldes. Todavia os privilégios com que, de modo especial, o Senhor quis premiar-lhes a fidelidade foram a confirmação na graça e a elevação à beatitude sobrenatural. Pela Primeira tornaram-se infalíveis e incapazes de pecar; infalíveis enquanto a sua inteligência nunca poderiam aderir ao erro; impecáveis enquanto a vontade jamais poderiam ter inclinação para o mal. Pela Segunda, os Anjos foram orientados para os mistérios do infinito, mereceram ver a Deus face a face, participantes da Sua felicidade e das maravilhas eternas do Paraíso.
"Esta é a hora dos Anjos" - Giovanni P. Siena
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