20 de janeiro de 2012

A revolta


    É convicção geral que desde a sua criação, os Anjos gozaram de uma beatitude e perfeição naturais, conforme o seu próprio ser, à condição de sua natureza angélica, às propriedades e aos atributos constitutivos e distintivos com que Deus os criou. Eles dominavam o universo sensível, conheciam a ordem que o governava, mas não tinham conhecimento perfeito da ordem sobrenatural. Os principais mistérios sobrenaturais haviam-lhe sido revelados na obscuridade da fé; viam a Deus apenas como num espelho, refletido pela própria natureza espiritual e pelas maravilhas das criação. Por outras palavras, eles conheciam a Deus pelos Seus efeitos, assim como um homem que, mesmo sem erguer seus olhos ao sol, faz dele uma idéia mais ou menos exata, através dos efeitos do calor que difunde e da vida que à terra comunica.
    O conhecimento dos Anjos diferia dos homens pelo fato deles aprenderem a medida e as proporções daqueles efeitos referidos, de um modo mais simples e mais profundo. E fácil é de atingir a razão disto: os Anjos ocupavam o lugar mais eminente da criação, estavam mais próximos de Deus, possuíam todas as qualidades requeridas para mais nitidamente perceberem a Sua onipotência, a Sua beleza e a Sua grandeza infinitas. Divergiam ainda dos homens no seguinte: os Anjos, conforme a feição de sua natureza, viam e sentiam melhor; assim como, exemplificando, o mesmo objeto e o mesmo som podem ser percebidos mais ou menos perfeitamente, conforme melhor ou pior vista, melhor ou pior ouvido que possa ter cada um de nós.
     Depois de esclarecido o conceito do conhecimento dos Anjos com referência à sua natureza, devemos acrescentar que Deus, num ato de liberalidade e num excesso de infinito amor, quis também fazê-los participantes do Seu próprio modo de existência, da Sua própria natureza divina, da Sua própria vida, elevando-os da ordem natural à ordem sobrenatural , do estado de simples criatura ao de filhos. E de que maneira? Em virtude de um princípio vital que, insuflado no espírito deles, os sublimou, os tornou capazes de uma atividade e de um poder superiores; quer dizer gratificou-os Deus com um dom - o dom da graça santificante.
       Desta forma, elevando-os do estado de criaturas ao estado de filhos, Deus tornou-se Pai para os Anjos. Pai que, preocupado com o futuro de Seus filhos quis fazê-los participantes do Seu Ser; isto é permitiria que O vissem, tivessem Dele uma visão inefável e inebriante, já não na obscuridade da fé e de seus efeitos, mas direta e imediatamente mergulhados e como perdidos no oceano da Sua luz, na imensidade da Sua sabedoria, nos caudais da Sua alegria, no infinito da Sua beleza e perfeição. Que dom não lhes era feito!...
       O grande segredo deste dom souberam-no os Anjos mediante a benévola vontade do próprio Deus. Mas ser-lhes-ia possível um dia conseguí-lo? Deus - de Quem os separava uma distância e um abismo impossível de transpor, apesar da sua posição sublime era-lhes inacessível, tal qual o sol para os mosquitos. Não os havia, no entanto, revestido Deus de uma nova virtude que lhes multiplicava o vigor e lhes dava asas mais velozes e robustas? Os Anjos dispunham dos inestimáveis recursos da graça; por conseguinte poderiam alterar-se. Porém era necessário que eles primeiro o merecessem. Com esse intuito os Anjos foram estabelecidos em posição tal que podiam livremente determinar-se, querer e agir, sem obrigação nem constrangimento de qualquer sorte. A liberdade, que é dos maiores e mais apreciáveis atributos divinos, era um dos dons com que foram enriquecidos. Pelo seu poder os Anjos poderiam ganhar o Paraíso, aspirando a ele sem coação, num estado de espírito absolutamente livre, feito de humildade e reconhecimento, de amor e de adoração para o seu Senhor e Benfeitor... Como iriam eles proceder? Que uso fariam da faculdade do livre arbítrio que lhes fora concedida?
        É provável que, de início, tenha havido por parte da massa global dos Anjos uma efusão espontânea e consciente, quase que uma chama súbita de reconhecimento e de amor. Àquele que os tirou do nada, dotando-os com existência própria, com maravilhosa e eminente personalidade. A seguir,porém,houve entre certos Anjos um arrefecimento, uma falta de amor que os levaria por fim à ruína.
        Acima de todos os Espíritos angélicos achava-se um mais esplêndido e poderoso, protótipo da semelhança Divina, cheio de sabedoria e perfeita beleza: era Lúcifer. Consciente de sua própria dignidade e nobreza natural, nelas se deleitou, admirando-as, e, desvanecido de si mesmo, tornou-se orgulhoso:"O teu coração ensoberbeceu-se com a tua beleza." Mas bem certo é que, onde quer que aponte complacência e estima própria, onde exista egoísmo e orgulho, extingue-se a generosidade diminui o amor a outrem. Foi assim que Lúcifer começou a não amar a Deus, opondo o amor próprio ao amor d'Aquele que o fizera nascer tão privilegiado e tão insigne para além de todos os seres criados. O orgulho foi crescendo a par do amor próprio e fê-lo esquecer a dependência de Deus. Persuadiu-se que conseguiria a bem-aventurança sobrenatural apoiado exclusivamente nos recursos da natureza e sem a graça Divina. De forma idêntica é que o homem, ensoberbecido pela ciência e pela inteligência - que a si mesmo não deve - fica sujeito a desvios. Mas o estímulo de Deus persegui-o; e é então que Deus se torna uma sombra, que esmaga o homem e que esse se esforça por repelir, para ceder às suas inclinações e justificar o seu mal procedimento.
     Não deve ter sido diverso o comportamento de Lúcifer. Tornaram-se inevitáveis o desconhecimento de Deus e a revolta contra Ele; e, uma vez eclodida a revolta, um como clarão sinistro incendiou o Céu. Estrondou grito horrífico, respondendo-lhe em eco multidão de anjos cujo amor próprio, auto-suficiência orgulho igualmente haviam  pervertido: "Hei de escalar os Céus...Serei semelhante ao Altíssimo!" vociferavam eles.
     Como raio surge então um espírito nobilíssimo; despredendo-se dele força empolgante e irresistível. Alteando-se com toda sua nobreza realçada por um impulso generoso e um furor sagrado, irrompe entre a multidão presa nas garras do tumulto e da perdição. "Quem é como Deus?" brada esse espírito magnífico e poderoso, o Arcanjo São Miguel. E esse brado trespassa como luz fulminante a extensão imensa do Céus, reboa por entre miríades de Anjos.Uns arrepiam-se perante a tragédia iminente;cobram ânimo outros e colocam-se apostos. As duas hostes antagônicas infileiram-se frente a frente, cada um com seu chefe. Trava-se por instantes conflito intenso "de pensamentos e sentimentos." Instante fatal foi esse, que aos revoltosos gelou de medo e a todos arrastou com Lúcifer, "precipitando do Céu como se fora um raio". De nada lhe presta ser o primeiro e mais forte: Deus, conservando-lhe embora a natureza incorruptível, degrado-o instantaneamente, priva-o da graça e da força que da graça lhe advinha. Tal qual o servo inútil da parábola dos talentos, ficou privado do que possuía, para logo ser lançado nas trevas onde há choro e ranger de dentes.
    
   Tal foi o trágico fim de Lúcifer e dos outros anjos rebeldes: exclusão do Paraíso, condenação sem termo e sem remédio. Castigo terrível de que não há exemplo na história humana e ao lado do qual a tragédia universal do dilúvio perde muito do seu horror.

     De harmonia com a lei da translação da graça, o Arcanjo São Miguel assumiu o comando das legiões angélicas em substituição a Lúcifer; e tanto ele como os demais Anjos fiéis foram enriquecidos com as graças e prerrogativas, que Deus já não podia derramar sobre os anjos rebeldes. Todavia os privilégios com que,  de modo especial, o Senhor quis premiar-lhes a fidelidade foram a confirmação na graça e a elevação à beatitude sobrenatural. Pela Primeira tornaram-se infalíveis e incapazes de pecar; infalíveis enquanto a sua inteligência nunca poderiam aderir ao erro; impecáveis enquanto a vontade jamais poderiam ter inclinação para o mal. Pela Segunda, os Anjos foram orientados para os mistérios do infinito, mereceram ver a Deus face a face, participantes da Sua felicidade e das maravilhas eternas do Paraíso.

"Esta é a hora dos Anjos" - Giovanni P. Siena






 

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